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sexta-feira, 22 de abril de 2011

Macacos me mordam: a confusão de 'ape' e 'monkey'

Já comentei anteriormente sobre a questão da tradução de 'ape' e 'monkey'. (Os próprios anglófonos são bem ciosos quanto à questão: uma postagem de Martin Robbins do The Lay Scientist sobre o tema, a resposta de Paolo Viscardi no Zygoma e também de John S. Wilkins no Evolving Thoughts*.)

Mas a boa nova que representa uma grande oferta atual de títulos de divulgação científica em português, torna esse problema mais patente. (Boa parte dos livros são traduções de originais em inglês e a fatia dedicada à biologia humana e evolução é, também felizmente, bem generosa.)

Vejamos alguns casos e como os tradutores tentaram solucionar (destaques em cores meus):
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With primates one is on more familiar ground. As the primatologist John Mitani has written, 'You cannot look closely at a great ape and fail to sense something very special'. It is the ultimate vanity: we are sensing ourselves. Some seventeen million years ago, during the Miocene period, there existed at least three times as many ape genera as today. Their surviving descendants are the lesser apes, or gibbons; the great apes (oragutans, gorillas, chimpanzees and bonobos); and humans, last of the Hominidae. All great apes appear to display linguistic abilities that come close to what we understand as true 'language', principally because the concept itself is anthropocentric."
Pp. 25-6.
Fischer, S.R. 2004. History of Language. Reaktion Books. 204 pp.

No caso de primatas, o terreno é mais familiar. Como escreveu o primatologista John Mitani: 'Você não consegue olhar de perto um grande primata sem sentir algo muito especial'. É o extremo da vaidade: percebemos nós mesmos. Cerca de dezessete milhões de anos atrás, durante o período mioceno, havia pelo menos três vezes mais gêneros de macacos do que hoje. Seus descendentes são os pequenos primatas ou gibões; os grandes primatas (orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos); e os seres humanos, o último dos hominídeos. Todos os grandes primatas parecem exibir habilidades linguísticas que chegam perto daquilo que entendemos por verdadeira 'linguagem', principalmente devido a seu conceito antropocêntrico."
Pp. 30-1.
Fischer, S.R. 2009. Uma breve história da linguagem. Novo Século. 302 pp.

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"Nowadays, scientists not only think we resemble apes. We include ourselves within the apes, specially the African apes. We emphasise, by contrast, the distinctness of apes, including humans, from monkeys. To call a gorilla or a chimpanzee a monkey is a solecism. It has not always been so. In former times, apes were frequently lumped with monkeys, and some of the early descriptions confused apes with baboons, or with Barbary macaques, which indeed are still known as Barbary apes. More surprisingly, long before people thought in terms of evolution at all and before apes were clearly distinguished from each other or from monkeys, great apes were often confused with humans. Agreeable as it would be to approve this apparent prescience of evolution, it unfortunately may owe more to racism. Early white explorers in Africa saw chimpanzees and gorillas as close kin only to black humans, not to themselves. Interestingly, tribes in both South East Asia and Africa have traditional legends suggesting a reversal of evolution as convetionally seen: their local great apes are regarded as humans who fell from grace. Orang utan means 'man of the woods' in Malay." P. 109
Dawkins, R. & Wong, Y. 2005. The Ancestor's Tale: A Pilgrimage to the Dawn of Evolution. Houghton Mifflinf Harcourt. 673 pp.


"Hoje em dia os cientistas não apenas acham que somos semelhantes aos grandes primatas. Nós nos incluímos entre os grandes primatas, e especificamente entre os grandes primatas africanos. Enfatizamos, em contraste, que os grandes primatas, incluindo os humanos, se distinguem dos macacos. Chamar um gorila ou chimpanzé de macaco é solecismo.

Nem sempre foi assim. Antigamente, era comum achar que grandes primatas e macacos eram a mesma coisa, e algumas das primeiras descrições confundiam grandes primatas com babuínos, ou com macacos-de-gibraltar (
Macaca sylvanus), esses últimos ainda hoje conhecidos em inglês como Barbary apes.* Mais surpreendente é o fato de que, muito antes de a evolução estar em pauta, e antes de os grandes primatas serem distinguidos uns dos outros e dos macacos, era comum confundir grandes primatas com humanos. Por mais que seja agradável aprovar essa aparente presciência da evolução, infelizmente ela talvez se deva mais ao racismo. Os primeiros exploradores brancos na África consideravam os chimpanzés e gorilas parentes próximos apenas dos humanos negros, e não de si mesmos. É interessante mencionar que tribos do Sudeste Asiático e da África têm lendas tradicionais que sugerem uma inversão da evolução como ela é convencionalmente vista: seus grandes primatas são vistos como humanos que caíram em desgraça. 'Orangotango', em malaio, significa 'homem da floresta'.

*Ape, em inglês, designa os primatas antropoides e, em especial, os grandes primatas não humanos: chimpanzé, bonobo, gorila, orangotango. (N.T.)"
Pp. 141-2.
Dawkins, R. & Wong, Y. 2009. A grande história da evolução: na trilha de nossos ancestrais. Cia. das Letras, 792 pp. (Grato ao Samir Elian e Bruno Rafael Santos pela ajuda com a versão traduzida.)------------------

Queria ilustrar com mais alguns exemplos, infelizmente estou sem acesso agora aos demais livros em que o tradutor utiliza soluções diferentes para se referir a "apes" e "monkeys". Na tradução de "The Naked Ape", de Desmond Morris, apesar de no título se referir a "O Macaco Nu", usam-se, respectivamente, "símios" e "macacos".

Como disse na outra postagem, em português, "símios" e "macacos" são a mesma coisa. O mesmo se aplicando a "mono" e "mico" (embora, no Brasil, haja uma tendência a se usar "mico" mais para saguis - com exceções como a expressão "ser mico de circo"). Primatas é um termo mais técnico e designa todo o grupo de organismos que inclui não apenas humanos, chimpanzés, gorilas, babuínos, micos-leões... como também lêmures, gálagos e társios.

"Grandes macacos", "grandes primatas" e "grandes símios" podem ser utilizados de modo intercambiável (mas não é exatamente o equivalente de "apes", mas sim de "great apes"; pois há os "lesser apes" - que são os gibões e parentes próximos). Porém, "pequenos macacos" é diferente de "pequenos primatas" e não equivale a "lesser apes". "Pequenos macacos" incluiria não apenas gibões e parentes próximos, mas também macacos do Novo Mundo, mandris, babuínos, resos, cólobos e outros. "Pequenos primatas" seria ainda pior, pois incluiriam os lêmures, os gálagos e os társios. (Veja a Tabela 1, que procura organizar as equivalências - e a falta delas - dos termos. Observe que a "nota do tradutor" de "A grande história da evolução" não é correta ao igualar "apes" a "macacos antropoides", os antropoides são sinônimos de "macacos", correspondente aos Simiiformes.)


Tabela 1. Síntese dos nomes técnicos e populares de grupos de primatas. Células coloridas: nomes populares correspondentes a grupos monofiléticos. (Clique sobre a imagem para vê-la ampliada.)

Precisamos com certa urgência criar um equivalente em língua portuguesa para o termo "ape". O termo técnico correspondente seria hominoideos - mas nem sempre se aplica exatamente. Em muitos contextos, o autor poderá usar "ape" excluindo humanos (hominoides não-humanos); e para se referir ao contexto em que inclui os "Barbary apes"?

Proponho tentativamente "macacos sem cauda". Não será totalmente preciso, já que haverá macacos sem cauda que não serão considerados do grupo "macacos sem cauda"; mas até aí, carnívoros como grupo de mamíferos (Carnivora) não inclui todos os organismos carnívoros (e.g. jacarés) e inclui organismos que não são exclusivamente carnívoros (e.g. o panda).

Uma solução precisa ser encontrada senão a confusão nos livros de divulgação - e até em literatura técnica - poderá tornar a coisa bastante confusa (mais do que já está).

*Upideite(26/abr/2011): Adido a esta data.

20 comentários:

rafael calsaverini disse...

O wikipedia parece ter adotado "símios" ou "símios antropomorfos".

http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADmio_antropomorfo

none disse...

Calsaverini,

Valeu pela visita e comentários.

Bem, a Wikipédia, como qq outra iniciativa ou projeto, tem o direito de adotar seus padrões internos. Mas ela não é uma boa fonte de autoridade: não é um corpo de especialistas a guiar as convenções adotadas.

[]s,

Roberto Takata

IGC.Brasil disse...

Belo trabalho este seu! Parabéns pelo blog.
Pergunta de um leigo no assunto...: a diferenciação entre os termos hominídio e hominoide não poderia ajudar no caso? Quero dizer, "ape" estaria para hominoide assim como monkey estaria para hominideo?
Abraço.

none disse...

Salve, IGC,

Grato pela visita e comentário.

Não seria exatamente a mesma relação. Hominóide inclui hominídeos. Não ocorre com "monkey" e "ape".

Dentro dos antropóides (simiformes), "monkeys" são tudo o que não são "apes (incluindo humanos)".

[]s,

Roberto Takata

none disse...

Salve, IGC,

Grato pela visita e comentário.

Não seria exatamente a mesma relação. Hominóide inclui hominídeos. Não ocorre com "monkey" e "ape".

Dentro dos antropóides (simiformes), "monkeys" são tudo o que não são "apes (incluindo humanos)".

[]s,

Roberto Takata

Mario disse...

Às vezes, há problemas com as traduções e temos de encontrar uma maneira de corrigi-lo. Às vezes, eu quero encontrar traduções de adestramento de cães , mas não combinar e eu tenho que usar outras palavras para se referir à mesma coisa. tentamos explicar com outras palavras, para entender o conceito que se destina.

none disse...

Mario,

Valeu pela visita e comentário.

De fato, a tarefa de tradução muitas vezes é ingrata. Com frequência não existem termos que sejam exatamente correspondentes entre as línguas - às vezes até dentro da mesma língua e país, quando falamos de regionalismos.

P.e. em algumas regiões é usado o gerúndio diminutivo: chovendinho, correndinho. Pode ser só algo aproximadamente traduzido pelo gerúndio normal mais um advérbio ou locução adverbial "chovendo fina e esparsamente", "correndo com certa ligeireza, mas não exatamente em desabalada carreira"...

[]s,

Roberto Takata

Antonio Luiz M. C. Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Antonio Luiz M. C. Costa disse...

Eu acho curioso a mesma pessoa que diz que é necessária uma palavra em português para distinguir "ape" e "monkey" rejeitar uma proposta por que veio da Wikipedia. Quem teria de inventar a palavra ou a distinção, Deus? Um congresso de biólogos? O Ministério da Ciência e Tecnologia?

O inglês também não distinguia ape de monkey antes do século XX. Coloquialmente as duas palavras ainda se confundem e algumas espécies de "monkey" ainda são conhecidas como "ape" (por exemplo, "Barbarian ape"). Foram enciclopédias e livros-textos que introduziram gradualmente a distinção nas obras de popularização de ciência. "Ape", por ter o sentido de "imitar", soa mais adequado para se referir aos primatas mais semelhantes aos humanos. "Símio", por evocar "semelhança", é um análogo plausível em português e já tem sido usado na Wikipedia, em algumas traduções e até em sites criacionistas. Pra quê querer reinventar a roda?

Antonio Luiz M. C. Costa disse...

Um exemplo do século XIX: Charles Darwin em "The Descent of Man"

"Their hands do not serve for locomotion so well as the feet of a dog; as may be seen in such monkeys as the chimpanzee and orang, which walk on the outer margins of the palms, or on the knuckles."

Uma nota da Wikipedia em inglês sobre a história da distinção entre "monkey" e "ape":

http://en.wikipedia.org/wiki/Monkey#Historical_and_modern_terminology

Antonio Luiz M. C. Costa disse...

Esqueci o link para Darwin em inglês:

http://www.gutenberg.org/cache/epub/2300/pg2300.html

IGC.Brasil disse...

Antonio, o fato que historicamente tais termos não terem tido uma distinção antes do século XX e o fato de, coloquialmente, haver confusão em seus usos não impedem de no Brasil, hoje, se buscar um uso terminológico mais apurado (quero dizer, um uso que mostre a diferença de relação existente entre uma coisa e outra: uma relação de hiponímia, hiperonímia).

E, sim, um congresso de biólogos deveria ser a autoridade máxima a responder à questão de quem deveria cunhar os termos para tal distinção.

Por fim, na época de Darwin não havia o que se chama atualmente de biologia molecular. Isso fazia com que as classificações ou organização dos objetos naturais fossem feitas segundo sua morfologia (e não sua constituição molecular, ou DNA, como feita hoje no caso em questão).

Isso implica em algo a ser corrigido em sua resposta. Se não compreendeu, estude a área que compreenderá.

Abraço.

Isaque

none disse...

Salve, Antonio, Isaque,

Grato pelas visitas e comentários.

Antonio,

Não estou rejeitando uma proposta porque veio da Wikipédia. O que observo é que a Wikipédia não é uma boa fonte de autoridade para ditar ou mesmo guiar convenções técnico-linguística.

O caso do Barbary ape (ou Barbary macaque), como citei no texto, é um contexto que deve ser levado em conta (é chamado de 'ape' quando se leva em conta que sua cauda é muito reduzida).

Não se trata de reinventar a roda, mas de *inventá-la*! Já que não existe essa distinção ainda no nosso vocabulário não-técnico.

Antonio, Isaque,

Na minha opinião, seria mais o caso de associação de tradutores - ouvindo linguistas e talvez biólogos - convencionar entre eles.

Até porque para os biólogos, estritamente, essa não é uma questão. Já que "apes" não faz sentido como um grupo não monofilético. E como grupo monofilético já possuem seus próprios termos.

[]s,

Roberto Takata

Unknown disse...

Eu sou pela importação do estrangeirismo mesmo. mete ape no texto e na primeira menção põe uma nota de rodapé explicativa. Isso se faz direto na área de tecnologia ou áreas teóricas. Se há um bom termo na outra língua e não existe correlato na nossa, o melhor é assimilar. Se for muito usado pode até um dia acabar se aportugesando, virando algo como Apo, ou Apão, Apões. Por mim manter o original Ape seria o melhor

none disse...

Salve, Fabio,

Valeu pela visita e comentário.

Gostei de 'apão' : D

Mas, um tanto quanto independentemente do termo a ser adotado, o importante é haver uma padronização.

[]s,

Roberto Takata

Anônimo disse...

E qual a diferença entre monkey e macaque, se ambos em português são "macaco"?

none disse...

Salve, Anônimo,

'Macaque' é designação comum para os macacos do gênero Macaca. Podemos falar em 'macacos do gênero Macaca'.

Grato pela visita e comentário.

[]s,

Roberto Takata

Tiago Falótico disse...

Existe um termo para "ape" em português. É pongídeo. Infelizmente não é muito usado ou conhecido (talvez por ser uma palavra que soa meio esquisita).

none disse...

Salve, Tiago,

Pongidae, um termo que não é mais usado em filogenia, por ser parafilético, não é exatamente o mesmo que "ape": já que deixa os gibões de fora. Equivale ao, no quadro, "grandes macacos"

Valeu pela visita e comentário.

[]s,

Roberto Takata

Cogumerlim Gaming disse...

Oi, caí nesta discussão ao tentar encontrar correlato, em português, à diferença entre monkey e ape em inglês. Minha instinto inicial era o de tentar "forçar" uma diferenciação entre macaco e símio, que hoje não existe, mas que aparentemente também não havia, antes, em inglês. Entender o processo de diferenciação deles pode nos ajudar a construí-la também na nossa língua. Como tudo em língua corrente, o que determina a prevalência de um termo é o uso: se os tradutores começarem a usar "símio" como "ape" (e, realmente, em termos de equivalência é o que me parece mais preciso), com o tempo essa passa a ser a definição principal, ainda que no início sejam necessárias notas de rodapé para explicar que essa convenção foi utilizada para facilitar a tradução em questão. Me parece o caminho mais fácil.

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