Vou destilar aqui uma série de preconceitos que existem a respeito dos jornalistas.
- Jornalistas se acham especialistas de tudo; com meia hora de lida em um livro acham que dominam a matéria - isso quando leem um livro.
- Jornalistas acham que têm bom senso e que bom senso substitui um trabalho investigativo compenetrado;
- Jornalistas acham que toda fonte deve estar disponível 24h por dia, 7 dias por semana;
- Jornalistas valorizam mais o furo do que um trabalho bem feito;
- Jornalistas não admitem quando cometem barriga - a culpa é do outro, a situação que mudou;Basta ler o
Observatório da Imprensa para ver como em jornalismo cometem-se besteiras piores do que no Senado ou nas ciências.
Tudo isso acima é tão verdadeiro quanto o texto preconceituoso da Sra.
Aquino a respeito da pesquisa científica.
Vejam o que *não* é besteirol para a Época, veículo do qual a Sra. Aquino é orgulhosa diretora da surcursal carioca:
1)
Seios fartos: a nova preferênca nacional?2)
Um quiz com expressões do tempo da vovó3)
Charlotte Roche - "A depilação está se tornando uma loucura"4)
Estou grávida da minha namorada São reportagens manchetadas no sítio da revista Época.
Ok, pode-se dizer que é uma tática do argumento
ad hominem - atacando a jornalista e o veículo em que trabalham, sem uma contra-argumentação efetiva contra o que foi dito. Bem, isso é para mostrar a questão do "dois pesos, duas medidas" a respeito do que seja relevância e risibilidade.
Sim, pode-se dizer que efetivamente jornalismo e pesquisa científica são diferentes de modo que duas medidas são necessárias. Mas se a questão é de seriedade, as reportagens listadas não são sérias. E, ademais, isso demonstra o perigo da generalização. Podemos perfeitamente listar um sem-número de reportagens banais, talvez em número maior do que o de pesquisas científicas banais - uma vez que a produção jornalística é muito maior do que a produção científica. A menos que a proporção seja significativa (e teremos que discutir o que é uma proporção significativa), será bobagem tomar tal listagem como representativa do corpo de reportagens e de pesquisas acadêmicas publicadas (a tal "receita de riso certo").
E um detalhe importante. Ela diz "ler
sobre pesquisas". Isso é diferente de "ler
pesquisas". Uma coisa é acompanhar de modo indireto pelo relato de terceiros - em especial jornalistas, que tentam vender algo para entreter seus leitores (e aquela lista acima das reportagens da Época é importante, sobretudo porque pelo menos duas delas constavam na seção de mais lidas - vide imagem abaixo).
Mas vamos então a uma análise passo a passo das bobagens perpetradas pela Sra. Aquino.
Com tanta desgraça na política, uma receita de riso certo é ler sobre pesquisas “científicas” de universidades respeitadas. Conclusões: o cérebro masculino vê mulher de biquíni e sem rosto como objeto. Canhotos vão pior na escola – e os mais desajustados são as meninas ambidestras. Genes gays excitam as mulheres. Brincadeiras fazem bem às crianças. Resultados variam do óbvio ao inverossímil e preconceituoso. Como se arruma patrocínio para tanto besteirol?
Bem, a generalização com "receita de riso certo" já foi comentada. Agora, ela diz
"variam do óbvio" - leia o post "Mas isso eu já sabia!" de Kentaro Mori, no blog 100nexos, sobre a questão do óbvio (remissão ao final) -,
"ao inverossímil" - qual o problema de ser inverossímil, desde que seja verdadeiro? aliás, desafiar o senso comum é um papel importante das pesquisas - é inverossímil que a passagem do tempo se altere com a velocidade de deslocamento? pois é a conclusão da teoria da relatividade; é inverossímil que elétrons se comportem como ondas? pois é a conclusão da teoria quântica -
"e preconceituoso". Dizer que canhotos se saem menos bem nos estudos é ser preconceituoso? Se isso é a realidade, por que não se deve dizer que isso ocorre? Até para, entre outras coisas, procurar corrigir isso. Homens ganham mais do que as mulheres para um mesmo serviço; negros têm um grau de escolaridade menor do que os brancos. Dizer que algo
é de um determinado modo não significa dizer que esse algo
deva ser assim. Preconceito seria tentar usar essas conclusões para embasar uma opinião a respeito da superioridade ou inferioridade de uma determinada classe social.
Essa enxurrada de conclusões, com base em entrevistas e em ressonâncias magnéticas do cérebro, vem revestida de um manto de credibilidade. A “mulher-objeto”, por exemplo. Foi “um experimento nos Estados Unidos com 21 homens heterossexuais estudantes de pós-graduação, apresentado em Chicago na Sociedade Americana para o Avanço da Ciência”. Avanço? O estudo, com uns gatos pingados, comprovou que “ao observar um corpo feminino sensual desprovido de identidade” – ou seja, ao olhar uma gostosa de biquíni e com o rosto escondido – “os circuitos cerebrais ativados nos homens são os mesmos acionados ao observar uma ferramenta, um objeto inanimado”.
Aqui a talvez única crítica acertada: o número amostral
*desse* estudo é relativamente baixo. A conclusão tem alcance limitado, sim, por conta disso. Mas a
"credibilidade" não é apenas um revestimento, é o estofo da pesquisa científica. Não que uma pesquisa científica por ser científica tenha credibilidade, mas uma pesquisa científica só tem razão de ser se tem credibilidade. O que dá credibilidade à pesquisa científica e seus resultados são os procedimentos tomados para se obter o resultado (alguns chamam de método científico, mas seria melhor dizer métodos científicos, no plural, já que não existe apenas uma maneira) - os procedimentos devem ser explicitados para que outras pessoas possam tentar replicar o experimento e ver se os resultados se repetem. Colocar os dados obtidos e as conclusões tiradas deles ao escrutínio de outros cientistas é também parte do processo de se obter reconhecimento e credibilidade. Como jornalista, a Sra. Aquino deveria entender isso - o processo não é muito diferente da credibilidade de uma notícia, de um jornalista, de um veículo: o fundamental é que a informação passada seja verdadeira tanto quanto possamos averiguar. A Sra. Aquino tem algum indício de que seja falso que:
“ao observar um corpo feminino sensual desprovido de identidade, [...] os circuitos cerebrais ativados nos homens são os mesmos acionados ao observar uma ferramenta, um objeto inanimado”? Aliás, que
enxurrada se forma com uma única conclusão e tão singela quanto essa?
Em relação ao "avanço". Sim, avanço. Embora seja o *nome* da instituição que promoveu a apresentação, o estudo é, em si mesmo, um avanço. Não é um salto. Não é a cura da aids, não é a solução para a fome no mundo. Mas um avanço científico. Um avanço científico se caracteriza pela expansão do conhecimento da humanidade acerca do funcionamento de algum aspecto da natureza. Não importa se é grande ou pequena essa expansão (sim, em geral é melhor quando se consegue uma grande expansão), não importa se é ou não aplicável imediatamente. O historiador
Peter Burke na famosa série "Conexões" ("Connections") mostrava muito bem como grandes conquistas científicas e tecnológicas atuais dependiam de um sem número de pequenas descobertas e invenções anteriores - muitas aparentemente sem nenhuma relação (daí as conexões que Burke estabelecia), triviais, sem importância. Darwin enchia um balde com água salgada e colocava sementes de diversas espécies nela - anotava o tempo que levava para afundar e quantos germinavam. Possivelmente alguém com a mentalidade da Sra. Aquino classificaria como perda de tempo tal estudo. Mas o resultado mostrava de modo bastante claro que ilhas distantes poderiam ser colonizadas por organismos vindo dos continentes. Isso foi uma peça fundamental para que Darwin explicasse a origem da diversidade em ilhas como as Galápagos e, consequemente, fundamental para o apoio à sua teoria da evolução por seleção natural. Com tão pequeno avanço proporcionado por sementes em um balde de salmoura...
Se uma mulher olhar a foto de um homem musculoso, de sunga e sem cabeça, provavelmente também vai encará-lo como objeto. Mais criativos ainda são os desdobramentos da pesquisa. Segundo a psicóloga Susan Fiske, da Universidade Princeton, deduz-se com esse estudo que “um patrão pode beneficiar certas companheiras de trabalho em detrimento dos demais funcionários da empresa, dependendo de como ele idealiza aquele corpo”. Quanto tempo perdido.
Sim, pode ser que ocorra eventualmente da mulher apresentar reação recíproca. E qual o problema? O que isso depõe contra a qualidade da pesquisa? Será que, se as mulheres encararem homens sem cabeça como objeto, isso fará com que seja falso que os homens vejam corpos de mulheres como objeto? Como é que ela considera tempo perdido uma possível implicação de que pode haver uma discriminação sexual no ambiente de trabalho? Isso é sério e demanda investigação.
Como o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, assina todos os documentos com a mão esquerda, é no mínimo inoportuna a pesquisa recente afirmando que “os canhotos vão pior na escola porque são uns desajustados com Q.I. mais baixo”. Foi um estudo amplo, com 10 mil crianças, da Universidade de Bristol, na Inglaterra. As garotas se saem pior ainda, porque, segundo os pesquisadores, “não existe um senso de superação entre as meninas que não escrevem com a mão direita”. E os ambidestros não desenvolveriam todas as habilidades motoras. Como sou mulher, ambidestra e escrevo só com a mão esquerda, esse estudo poderia ter arrasado minha autoestima. Seria trágico se não fosse cômico.
O fato de Obama ser canhoto não tem nada a ver com isso. A Sra. Aquino desconhece o que significam
médias. Se os homens na média são mais velozes do que as mulheres não quer dizer que toda mulher é mais lenta do que qualquer homem. Uma campeã olímpica é certamente mais rápida do que eu. Mesmo uma atleta de fim de semana provavelmente é mais veloz. Não há nenhuma tragédia (a não ser a ignorância da jornalista a respeito de estatística) nem comicidade. Canhotos vão menos bem nas escolas, o que isso tem risível? Mostra exatamente a necessidade de ajustes no sistema escolar para que os canhotos possam ir tão bem quanto os destros.
Rapidamente surge outra pesquisa em que não consigo me encaixar. Na Universidade de Queensland, na Austrália, comprovaram que genes gays enlouquecem as mulheres. Como assim? Homens gentis e sensíveis atraem mulheres, isso todo mundo sabe, para que pesquisar? E vice-versa. Mas gentileza não é uma característica feminina nem homossexual. O pesquisador Brendan Zietsch foi além. Pesquisou 5 mil gêmeos de ambos os sexos para concluir que seriam mais atraentes os irmãos de homossexuais ou lésbicas. A que se prestam as estatísticas...
Óbvio? É óbvio que mulheres prefiram homens com trejeitos femininos? Por que Schwarzenegger despertaria tanto interesse feminino então? Aliás, as repórteres Marcela Buscato e Marianne Piemonte, que fizeram reportagem para a mesma
Época sobre o tema discordam, dizem elas:
"Torquatto não se encaixa no senso comum de que as mulheres preferem o tipo galã machão." E, se a Sra. Aquino tivesse lido a reportagem publicada no próprio veículo em que trabalha, entenderia o contexto da pesquisa: desvendar a origem de possíveis fatores genéticos no comportamento homossexual:
"A idéia circula entre acadêmicos há dez anos. E é apenas uma das teorias que tentam explicar como supostos genes que determinariam a homossexualidade teriam evoluído. A questão intriga os cientistas porque desafia as leis da seleção natural."Uma pesquisa inédita, da Faculdade Albert Einstein de Medicina, em Nova York, comprovou que crianças que dispõem de 15 minutos de intervalo para brincar na escola são menos bagunceiras e aprendem mais que as crianças confinadas o dia inteiro numa sala de aula. Esse estudo envolveu mais de 10 mil crianças entre 8 e 9 anos. Para provar o que todo ser humano já sabe. Que reter por muitas horas alguém de qualquer idade numa sala, de aula ou conferência, prejudica a concentração e a absorção de conhecimento.
Óbvio? A Sra. Aquino certamente não leu o alerta no estudo: 30% das crianças tinham pouco ou nenhum intervalo; 40% das escolas incluídas no estudo haviam reduzido o tempo de intervalo. Além do fato de professores muitas vezes punirem os alunos impedindo-os de irem ao recreio. Isso dentro de um contexto em que os pais americanos estão paranóicos com a segurança dos filhos e os atucham de compromissos escolares e acadêmicos para ocuparem seu tempo.
Quem acha que essas pesquisas estapafúrdias são exceção deve acessar o link http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Ig_Nobel_Prize_winners. O Prêmio IgNobel (ignóbil) é uma paródia autoexplicativa do Nobel. Eis as conclusões hilárias de algumas pesquisas em 2008: pulgas que vivem nos cães pulam mais alto que as que vivem nos gatos; a Coca-Cola é um espermicida eficiente; dançarinas de striptease ganham mais dinheiro nos períodos de fertilidade; medicamentos falsos caros são mais eficientes que medicamentos falsos baratos; a comida é mais saborosa quando soa mais atraente; montes de fios ou de cabelo inevitavelmente enroscam.
Continuam a ser exceções, como dito a respeito de generalizações, essas listas representam um universo ínfimo do total de pesquisas científicas realizadas ao longo de um único ano. Os 13 países com maiores números de pesquisas publicadas, entre 1996 e 2006, produziram em média mais de
60 mil artigos por ano. Parte das premiações do IgNobel não vão para pesquisas científicas, mas sim para pseudociências - como o livro de Däniken, "Eram os deuses astronautas?". Além disso, o objetivo expresso da
Improbable Research (organizadora do IgNobel) é:
"to make people laugh, then make them think. We also hope to spur people's curiosity, and to raise the question: How do you decide what's important and what's not, and what's real and what's not — in science and everywhere else?" ["fazer as pessoas rirem e, então, pensarem. Esperamos ainda promover a curiosidade das pessoas e trazer a questão: como você decide o que é importante e o que não é, o que é real e o que não - nas ciências e em todo o resto?"]. Ela não tem como objetivo avaliar a qualidade dos trabalhos laureados - tanto é que muitos ganhadores fazem questão de estar presentes à cerimônia de entrega. Mas vamos fingir que o IgNobel fosse um indicador de qualidade ou falta dela em um trabalho científico. A IR distribuiu cerca de 110 prêmios entre os anos de 1996 e 2006 - nem todos nas áreas científicas e muitos deles para pesquisadores que não estão em
"universidades respeitadas". Multipliquemos esse número por mil - 110 mil trabalhos. Consideremos apenas os 2,9 milhões de artigos científicos publicados pelos 13 países de maior produção no mesmo período. Teremos menos de 4% de artigos científicos risíveis.
É muito mais saudável que ler sobre o Senado, Sarney, Collor e Renan Calheiros. Está comprovado cientificamente.
Essa
pièce de résistance que coroa um artigo que destila ignorância acerca de estatística, análise de dados e ciências convida os leitores a serem não apenas cientificamente analfabetos, mas também politicamente estultos.
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Recomendo a leitura destes postes de outros blogues:Cara Ruth de AquinoPesquisas científicas me fazem rir!Ciência e o óbvio"Mas isso eu já sabia!"O "Besteirol na Ciência", o Cientificismo e o Senso Comum (adido em 26/mar/2009)
Analisando a Polêmica "Palhaçada Científica" de Ruth (adido em 27/mar/2009)
Ruth de Aquino: enterrando a defunta (adido em 06/mai/2009)
O
SemCiência está compilando textos a respeito da bobagem da Sra. Aquino.
Upideite (01/abr/2009): É mentira, Terta? Versão condensada deste post saiu no
Observatório da Imprensa. Há alguns errinhos: por favor, vejam os comentários de lá.