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segunda-feira, 7 de maio de 2012

Jogo dos erros 3d

Segue a parte final da série de postagens analisando a entrevista do Prof. Ricardo Felício da FFLCH/USP ao Programa do Jô. (Reclamaram do uso do cinza para os trechos, mudo para verde.)

21'11: "Não, isso [de avanço do mar sobre a orla] é um fenômeno que já é estudado pela morfologi... geomorfologia, já há muito tempo, e é chamado, então, de agradação e degradação. Então a gente fala assim, a gente usa a palavra degração achando, assim, ah, estamos destruindo o planeta. Não, o próprio planeta se mexe, ele vai mudando suas formas. Então ele também, o mar também faz seus processos de agradação, formar praias, e degradação, ele também desfaz as praias. Isso é um processo natural também."
Há sim processos naturais de formação e erosão de praias e das paisagens em geral. O que não quer dizer que a elevação do nível dos oceanos não estejam sumindo com terras litorâneas. Zhang et al. (2004) concluem que há já avanço da erosão costeira por conta do efeito indireto do aquecimento global, embora Stive (2004) questione a metodologia usada: a aplicação da regra de Bruun (uma equação que relaciona as características do litoral - como sua inclinação - e a elevação do nível do mar com o total de área inundada: detalhes podem ser vistos em Ranasinghe & Stive 2008). Há também um efeito humano causado pela ocupação das áreas litorâneas de modo desordenado, levando à destruição da flora local, potencializando o efeito erosivo das marés e mesmo de fenômenos atmosféricos como tornados e furações (vide Feagin et al. 2010). Para um diagnóstico da situação do litoral brasileiro, veja a série de estudos do Ministério do Meio Ambiente "Erosão e Progradação do Litoral Brasileiro"***

21'46: "Não [a água do aterro não vaza para outro lugar]. Não, a área é mínima não tem como [o mar se expandir para algum lugar por causa do aterro]. Não [não tem influência nenhuma]."
Em termos de deslocamento de massa de água, realmente os aterros têm um volume mínimo comparando-se com o volume dos oceanos. Outros efeitos se fazem sentir localmente, no entanto. Especialmente se mal projetados: impactos sobre a biodiversidade, alterações nos padrões de correntes litorâneas locais e até enchentes (Choudhury 2004).

23'47: "Não, primeiro que não sou nem contra o Código Florestal, não tem... não mexo nada com isso e segundo porque também não tenho nada a ver com a bancada ruralista. Muito menos. Então não sei daonde ele tirou essas informações. São totalmente furadas. Não, isso daí [a ideia do Juca de Oliveira de que a remoção do petróleo do pré-sal com o bombeamento da água do mar faria com que o calor do centro da Terra esquentasse a água, implodisse a região e provasse tsunamis], eu desconheço pra poder falar alguma coisa, eu teria que consultar um... Não [não é possível], não. A influência, 99% da energia que está na superfície da Terra vem Sol. 99%, 99,99%, na verdade. A geotérmica é insignificante em frente ao estrato geográfico, que é a casquinha do planeta. Não, mesmo assim, continua não sendo [influente, mesmo em escala local]. O Sol, por exemplo, todo mundo fala assim: 'Ah, o Sol é uma constante.' Ah, o Galileu quase foi pra fogueira, né? Daí começou a achar manchas no Sol. 'É. Acho que o Sol não é uma constante.' Não é. O Sol tem os seus ciclos, né?, de alteração. O principal é o de 11 anos, então, 11 anos ele vai aumentando sua atividade, e 11, é... diminuindo. Então, mais ou menos, 4 subindo, 7 descendo. E também tem outros ciclos de 90 anos, outros ciclos de 200. Então, agora, por exemplo, estamos entrando num período mais calmo do Sol que vai até 2046. Então se vocês estão pensando que vai ter aquecimento global.. Não, na verdade vai ter é um resfriamento. Que já está na verdade acontecendo desde 1998. Já [está ocorrendo o resfriamento]. As temperaturas na verdade já estão diminuindo."
Aparentemente o entrevistado não compreendeu a proposição do ator Juca de Oliveira. De fato, a geotérmica é um input insignificante no geral. Mas consideremos os terremotos. A energia liberada anualmente pelos abalos sísmicos é estimada em algo como 10^17 a 10^18 J. A energia solar que aporta à Terra anualmente é por volta de 5.10^24 J - uns 30% ésão refletidos (pelas nuvens, atmosfera e solo), então cerca de 10^24 J/ano estão disponíveis para a dinâmica da superfície. Isto é, a energia sísmica equivale a 10^-7 ou 0,00001% da energia solar. E não é correto concluir com base nisso que terremotos não provocam tsunami.
Mas a tese de Oliveira não se sustenta. Se a água é melhor *condutora*, ela simplesmente faria a energia se *dissipar* mais rapidamente, em vez de se acumular perigosamente. Além disso, a temperatura dos depósitos de petróleo de pré-sal sãoé de cerca de 60-70°C. Bem longe de qualquer potencial explosivo. A pressão local é grande, mas há um gradiente de pressão ao longo da coluna de rocha e de água
O Sol, de fato, apresenta ciclos (Figura 1)*. E, de fato, estamos para entrar na fase de diminuição da atividade solar (completando o chamado ciclo 24). O ciclo 24 é predito para ser o ciclo de menor atividade geral nos últimos 100 anos, o que é longe de representar um ciclo de resfriamento - mas até 2020, não até 2046 (embora os ciclos 25 e 26 também possam ser reduzidos - caso o ciclo de Gleissberger de 87-8 anos seja real, vide Peristykh & Damon 2003)**. Entre os anos 2000 e 2010 passamos pela fase de diminuição da atividade solar no ciclo 23, mesmo assim não se observou um resfriamento. Pode significar uma temperatura anual média menor do que a dos últimos tempos, mas ainda dentro da tendência geral de aumento - veja as Figuras 1 e 2 da primeira parte da série sobre o aquecimento global: houve vários períodos em que a temperatura média caiu, mas a tendência geral de subida da temperatura se manteve. Os gráficos das mesmas figuras desmentem que a temperatura esteja caindo desde 1998. A Figura 2 apresenta um gráfico de correlação entre a concentração atmosférica de CO2, atividade solar e temperatura da superfície da Terra - repare como a concentração de CO2 acompanha melhor a temperatura do que o número observado de manchas solares.*
Figura 1. Variação da atividade solar (número de manchas solares mensais) no período 1749-2011.Fonte: MSFC/Nasa. Média do intervalo entre os picos: 10,92±2,08 anos.*

Figura 2. Correlação entre temperatura da superfície da Terra, concentração atmosférica de CO2 e atividade solar (normalizado entre 0 e 1). Fontes: temperatura - GISS/Nasa, atividade solar - MSFC/Nasa e CO2 - GISS/Nasa.*

25'16: "Total, [a influência do Sol no nosso clima] é 100%. Aí depois você tem Lua, um pouco de Júpiter também, e Saturno, mexendo nos campos gravitacionais. Mas o resto vai ser o Sol, no primeiro escalão, o segundo escalão são os vulcões e aí o pessoal do terceiro escalão são os oceanos. É, os vulcões. Não [não tem a ver com a teoria do Juca de Oliveira], os vulcões na verdade tem o problema ao contrário. A resposta deles é negativa, porque eles jogam cinzas vulcânicas na estratosfera, que seria a segunda principal camada da atmosfera, e aí não deixa a energia solar ir para a superfície. Então quando tem atividade vulcânica, em geral, assim intensa, você já o próximo verão, inverno mais frios. Krakatoa foi um grande problema, né? O ano seguinte não teve verão. É, depois que ele entrou em atividade, o ano seguinte não teve verão. De tanta cinza vulcânica que ele jogou na estratosfera. Mas não tem problema [o fato de não termos grandes vulcões no Brasil]. Em qualquer lugar que eles estiverem... O chileno, agora, o ano passado. Acho [graça], é bonito. O chileno agora no final do ano entrou em erupção... bom, afetou até aqui, os estados do Sul, né?"
Bom notar que, embora o Sol, a Lua e os planetas tenham efeito gravitacional sobre a Terra, a questão climática não está diretamente ligada a esse efeito, mas sim a eventuais mudanças na orientação do eixo de rotação - que alteram a distribuição de luz pelo globo - à na excentricidade da órbita - que alteram as distâncias em relação ao Sol (componentes do ciclo de Milankovitchi).
É verdade que vulcões, por meio de cinzas e particulados, têm um efeito de resfriamento. Mas as cinzas acabam se assentando e o efeito passa. Por outro lado, atividades vulcânicas emitem CO2.
Como observado na parte 2 da série, o Sol, no entanto, não parece explicar o aquecimento (no máximo, deve contribuir com 30% da variação) e, como observado na parte 3, o vulcanismo não parece contribuir com o aumento de CO2 - pela assinatura do isótopo de C13.
Então, embora sem dúvida o Sol e os vulcões sejam importantes para o clima na Terra, não devem ser eles os responsáveis pela *alteração* atual.

26'56: "É, o El Niño é um fenômeno bem interessante, totalmente desconhecido. Muito complicado, é um fenômeno de alta frequência. Ele às vezes ele fica quatro, cinco meses, desaparece mais uns quinze. Polarizado, né?, tem o El Niño, La Niña, às vezes ele fica meio intermediário, não joga nem para um lado nem para o outro. Tem La Niña também, é... e eles também estão atrelados a outro fenômeno chamado Oscilação Decadal do Pacífico. Esse é o mais longo, que foi descoberto sem querer com a pesca no Pacífico, né? Que os peixes desapareciam durante uma época e depois era uma abundância total de peixes. Aí, viam que estava ligado com a temperatura da superfície da água do mar. Então o Pacífico, ele tem uma polaridade de estar mais frio ou mais quente, muito próxima à oscilação do Sol. E tinha que ser né? A gente sempre esquece, o Pacífico é um terço do tamanho da Terra. Um terço do tamanho da Terra é o Pacífico."
O El Niño/La Niña são, de fato, importantes fenômenos a impactarem o clima na Terra, estando ligados a modificações mais ou menos periódicas dos índices de pluviosidade (aumentando em um lugar, diminuindo em outro); assim como a Oscilação Decadal do Pacífico, embora a ligação entre os fenômenos seja ainda alvo de debates (vide Mantua & Hare 2002).
Só uma nota de certo estranhamento. Bem acertadamente o professor chama a atenção para a extensão do Pacífico e que isso implica na influência do clima. Mas em uma fala anterior diz: "Coitadinhos dos continentes, né?, aquelas coisinhas de nada". O Pacífico tem uma área de cerca de 165,2 milhões de km2; os continentes totalizam 148,6 milhões de km2.

*Upideite(08/mai/2012): Adido a esta data.
**Upideite(11/mai/2012): A depender da metodologia, no entanto, o ciclo 24 pode não ser particularmente baixo. Modelos de Dínamo de Fluxo de Transporte com dominância do fluxo meridional prevê uma amplitude de 165±15 manchas (entre 30 e 50% *maior* do que o ciclo 23), vide Dikpati et al. (2006). O ciclo atual servirá de teste entre diversos modelos de predição da duração e intensidade dos ciclos solares.
***Upideite(14/mai/2012): Adido a esta data.

11 comentários:

André Carvalho disse...

Excelente! Assisti ao vídeo parando pra ler os comentários nos posts, e foi fantástico pra me ajudar a entender os dois lados da questão. Eu sempre fico com um pé atrás quando vejo alguém usando palavras como "nunca", "inexistente", etc, e gostei muito de ter encontrado essa série de posts respondendo ao vídeo do prof. Ricardo Augusto. Obrigado por essas informações esclarecedoras, sr. Roberto Takata =)

none disse...

Salve, Carvalho,

Muito obrigado pela visita e comentários.

Bom saber que a série está sendo útil para esclarecer algumas questões.

[]s,

Roberto Takata

Unknown disse...

Muito bom Roberto. Seria legal ter espaço na mídia para réplica a essas declarações. Você já faz sua parte aqui no blog, parabéns.

none disse...

Salve, Beijamini,

Bem, a mídia parece estar numa vibe negacionista agora. Teria tta gente boa pra apresentar os dados científicos sobre o aquecimento global. Pena q tenham tto apego ao sensacionalismo: tto no lado catastrofista qto no lado negacionista.

Eu queria era ver mais gente fazendo análise dessas bobagens. Pelo Google pelo menos tá difícil de se encontrar.

Valeu pela visita e comentário.

[]s,

Roberto Takata

Alexandre disse...

O aquecimento causado pelo homem se sobressaiu do ruído de fundo da variabilidade natural por volta da década de 70. Se considerarmos esse período (70 até hoje, e não todo o século XX), o sol teve contribuição nula, possivelmente até negativa, uma vez que os últimos um ou dois ciclos se mostraram ligeiramente menos intensos. Como mostra esse gráfico do Max Plack Institute.

A ODP também: está num nível hoje que não é mais quente do que há 50 anos, e a temperatura está bem mais alta.

Por outro lado, o CO2 tem propriedades conhecidas e medidas, tanto em laboratório quanto em escala mundial: mede-se o infravermelho diminuindo ao sair da atmosfera (Harries 2001, Griggs 2004, Chen 2007)e aumentando ao retornar à superfície (Phillipona 2004). As hipóteses do sol e da ODP não são consistentes com essas observações. Por outro lado, são confirmação clara do efeito estufa como já era previsto em teoria há mais de 100 anos.

Essas afirmações do Felício se baseiam apenas em palavreado que soa técnico, mas não têm substância que lhes dê suporte.

Roberto Berlinck disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
none disse...

Salve, Lacerda,

Valeu pelos complementos.

[]s,

Roberto Takata

kondde disse...

"O Pacífico tem uma área de cerca de 165,2 milhões de km2; os continentes totalizam 148,6 milhões de km2."

Então só o pacifico é 16 mi de km2 maior do que o TOTAL em área de TODOS os continentes!

Você só se contradiz quando tenta refutar algo que o Prof. Ricardo falou, e isso quando não concorda com o que ele disse.

none disse...

Nenhuma contradição de minha parte, kondde.

Se o Pacífico com uma área equivalente a dos continentes tem influência no clima, não há motivo para que os continentes não possam influenciar também. E a influência é bem conhecida como nos ciclos de glaciação.

[]s,

Roberto Takata

ex-residente disse...

Parabéns pelo trabalho minucioso, e pela postura acadêmica.

Enriquefbarros@gmail.com

none disse...

Caro Enrique,

Muito obrigado pela visita e pelo elogio.

[]s,

Roberto Takata

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