A propósito das discussões suscitadas pelo mais recente caso de plágio na USP, reproduzo abaixo trecho de um ensaio mais longo (em verdade, mais uma colcha de retalhos) que estou preparando (no andar da carruagem não termino antes do mundo acabar em 2012)*.
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Várias outras limitações surgem às ciências em função dela ser uma atividade humana. Não obstante, a mais insidiosa certamente é a adulteração deliberada dos dados: a fraude. Há vários motivos por que alguém relataria um achado falso. Ser o primeiro a anunciar a realização de um feito perseguido por vários outros pesquisadores é uma glória que satisfaria a muitos: no entanto, somente uma pessoa pode obter esse feito. E isso pode depender de recursos que não estão disponíveis ao pesquisador, ou ele pode estar sem sorte. Atualmente existe ainda a pressão por publicações: o pesquisador que não lança artigos a uma certa taxa é tido como improdutivo, preguiçoso e imerecedor de promoções ou da própria manutenção do cargo. Talvez a filha dele esteja doente, ele não tenha tido muito tempo para se dedicar às pesquisas e o órgão financiador ameaça suspender o financiamento de seu trabalho, o que mancharia seu currículo. Certamente uma fraude mancha de modo mais profundo e permanente, mas conquanto não seja descoberta... Vira um jogo. Um jogo duplamente perigoso. Não apenas à carreira do pesquisador, mas ao próprio sistema de produção de conhecimento científico: altamente dependente de uma relação de confiança. Há mecanismos para tentar inibir a fraude ou erros não propositais: os trabalhos devem apresentar a metodologia de modo que outros pesquisadores possam tentar replicar os achados, os artigos são submetidos ao exame de outros pesquisadores na área para que possam tentar detectar erros e sugerir melhorias. Mas não são mecanismos à prova de falhas. E há até mesmo uma forte pressão para que tal procedimento seja revisto, em parte, novamente, pela pressão para a publicação: o processo de revisão pelos pares tende a tornar tudo muito mais lento e custoso. Se erros são detectados após a publicação, os trabalhos podem ser retirados (na prática anuncia-se que eles não são mais válidos, se estiverem em servidores web o arquivo é removido do diretório e substituído por uma mensagem de alerta) por iniciativa da publicação e/ou dos autores do trabalho.
Estas fraudes, disse, minam a razão de ser do processo científico. É como a presença de notas falsas circulando no mercado. Isso debilita a credibilidade do sistema: quem recebe as notas não sabe se poderá trocá-las por produtos e serviços e tende a se recusar a recebê-las, independentemente de se são verdadeiras ou falsas. Tal fato foi usado como arma de guerra. Durante a Segunda Guerra, a Alemanha nazista, na operação Bernhard, produziu um grande número de libras falsas (estima-se que a produção correspondeu a um valor equivalente a 15% do montante de libras circulante à época), empregando as habilidades de prisioneiros judeus do campo de concentração de Sachsenhausen. O governo britânico, percebendo que poderia abalar a credibilidade da moeda do país, decidiu aceitar tais notas como meio circulante – retirando-as gradativamente à medida que chegavam aos bancos e eram detectadas. Certamente houve prejuízos, entretanto a alternativa: a dissolução da confiança na moeda, provavelmente traria danos ainda maiores. O episódio foi retratado em 2007 em um filme austríaco ganhador do Oscar, Die Fälscher (Os falsários).
Mas a aceitação de trabalhos científicos com resultados falsos não é possível. Se fraudes ocorrem em pequena escala, o problema é circunscrito. Infelizmente há indicações de que atualmente a prática não é tão rara. Na condição de manterem anonimato, 33% de 3.247 cientistas americanos pesquisados da área da saúde admitiram ter incorrido (nos três anos anteriores à pesquisa) em algum tipo de conduta antiética na pesquisa (plágio, não dar atenção ao contraditório, não prestar atenção nas falhas das análises de terceiros, etc.), 0,3% admitiram algum tipo de falsificação dos dados (Martinson, BC et al. 2005. Scientists behaving badly. Nature 435: 737-8). Em um estudo meta-analítico, 33,7% dos cientistas admitiam alguma conduta reprovável e 1,97% admitiam ter adulterado os dados pelo menos uma vez (Fanelli, D. 2009. How many scientists fabricate and falsify research? A systematic review and meta-analysis of survey data. Plos One 4(5): e5738. Acessado em: 16 de julho de 2009. Disponível em: http://www.plosone.org/article/info:doi/10.1371/journal.pone.0005738).
2% de fraude pode não parecer grande coisa, mas um levantamento de 2006 detectou 632 remoções de artigos (“retractions”) na base de dados PubMed (Liu, SV. 2006. Top journal’s top retraction rates. Scientific Ethics 1: 91-3). Claro, não são todas as remoções que correspondem a um caso de fraude, na verdade, os casos de remoções por fraude são bastante raros**. Se considerarmos um número mais modesto dos 0,3% reportados no trabalho de Martinson e colaboradores (2005), os 632 trabalhos corresponderiam a um total de pouco mais de 210.000 trabalhos (se considerarmos os 2%, seriam pouco menos de 32.000 artigos). O número total de artigos indexados na base é muito maior do que isso [em 1995, a base Medline do PubMed tinha mais de 9 milhões de artigos indexados (Schulman, J-L. 2000. Using medical subject headings (MeSH) to examine atterns in American medicine. Acessado em: 17 de julho de 2009. Disponível em: http://www.nlm.nih.gov/mesh/patterns.html.); em 2008, mais de 16 milhões (Medline. 2008. Fact sheet: Medline. Acessado em 17 de julho de 2009. Disponível em: http://www.nlm.nih.gov/pubs/factsheets/medline.html).] Então o processo de depuração (a autocorreção das ciências, na visão de Sagan) não parece mesmo estar dando conta – a situação fica ainda mais complicada se considerarmos o universo de ações reprováveis e erros na produção do trabalho que justificariam sua remoção. Por alto (e sendo generoso), o processo de depuração científica está trabalhando a uma taxa de apenas 2% de eficiência – 98% das fraudes e erros cometidos se acumulam, indetectados, na literatura científica mundial (atenção ao leitor ou leitora que tenha lido o trecho anterior com alguma pressa: não se disse que 98% da literatura científica contenha fraude ou erro, mas sim que, dentre os artigos que têm problemas, 98% passam incólume pela revisão posterior a sua publicação).
Todas essas questões e limitações e ocorrências de fraudes, um número delas certamente não detectado, devem fazer um cidadão consciencioso refletir sobre qual então a validade de tudo aquilo que se nos apresenta como conhecimento científico chancelado pela comunidade de pesquisadores.
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*Upideite(29/nov/2009): A carruagem não acelerou, mas o ensaio não completamente finalizado pode ser obtido aqui.
**Upideite(05/out/2012): Aparentemente não são tão raros assim. Um estudo de Fang e cols. (2012) encontrou que 43,4% dos artigos removidos desde 1975 na base Pubmed o foram devido a fraude, 14,2% por duplicação de publicação e 9,8% por plágio.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
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Um comentário:
Recebi esse comentario no SEMCIÊNCIA, acho que era dirigido ao Marcelo Leite…
Informações a serem verificadas. Sherlock Takata? Ou será que ele é a origem desse comentário? risos
Anônimo disse…
Marcelo,
sou pós graduando aqui da USP, e estou acompanhando este caso absurdo (o do plágio envolvendo um grupo de pesquisa da USP-RP). Todos nós ja sabemos que a corda vai quebrar para o lado da estudante e não do chefão!!
Mas, eu gostaria de mencionar uma informação: Se você olhar nas referências deste artigo (o que plagiou as figuras) e ver o primeiro artigo da lista (França, 2007), vai descobrir que os gráficos foram copiados de lá!!!
Isso demonstra que a pratica do plagio por este grupo não poupa nem os seus próprios trabalhos de serem copiados. Precisamos lembrar que, se Carolina não era autora deste paper, como ela pôde ter acesso aos originais do mesmo para fazer as modificações dos simbolos da legenda???? Um dos autores deve ter fornecido isso para ela – o próprio Andreimar ??? E mais grave ainda, se olhar com atenção no paper de onde os gráficos foram copiados, você vai perceber claramente que dois deles são absolutamente cópia um do outro. E não adianta falar que não porque é impossíveis, dois experimentos distintos, com venenos diferentes, darem o mesmíssimo perfil no gráfico. Tanto é que um ponto foi descaradamente modificado!! Enfim, isso só demonstra que por mais que a Carolina tenha feito a ‘maracutaia’ em algum momento houve conivência por parte do orientador, pois anteriormente a ela a prática já era comum em seu grupo!!
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