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sábado, 20 de fevereiro de 2010

Discutindo ciências filosoficamente 2

Na postagem inicial desta série, falei um pouco sobre o falsificacionismo popperiano. Faço aqui uma pequena incursão no campo da lógica aristotélica e em como isso se liga à questão do popperismo.

Os elementos básicos da lógica são as proposições. Proposições são afirmações ou negações às quais, ao menos em princípio, podem-se atribuir valores de verdade: são verdadeiros ou falsos (ou eventualmente algo intermediário). Na lógica aristotélica, uma proposição pode ser apenas verdadeira ou falsa - não podem ser falsas e verdadeiras ao mesmo tempo ou ter valores intermediários. Uma hipótese científica é uma proposição - embora nem toda proposição seja uma hipótese científica. P.e. o dragão na garagem saganiana não é uma hipótese científica (não é refutável nem em princípio), mas é uma proposição lógica (por hipótese podemos atribuir um valor de veracidade ou de falsidade).

Popper diz que uma hipótese científica pode, no melhor dos casos, ser mostrada como falsa, mas os dados nunca nos dizem que ela seja verdadeira. Por outro lado, uma hipótese científica é uma proposição, portanto, pode ser atribuída a ela um valor de verdade - poderia ser verdadeira ou poderia ser falsa. Haveria uma contradição aí? Não. E procuro demonstrar abaixo.

Falamos de proposições, agora falemos de argumento. Um argumento, em lógica, é um conjunto de proposições nos quais um subconjunto (conclusão) é derivado de outro subconjunto (premissas) - um argumento válido é aquele em que as conclusões decorrem logicamente das premissas, um argumento inválido é aquele em que as conclusões não decorrem das premissas.

O tipo mais comum de argumento lógico é o silogismo. Em um silogismo há duas premissas e uma conclusão decorrente das duas premissas. Em um silogismo válido, os valores de verdade das premissas e da conclusão são ligados. Porém, a única coisa que pode ser garantida é que se todas as premissas forem verdadeiras, a conclusão é verdadeira ou, de modo equivalente, se a conclusão não for verdadeira nem todas as premissas são verdadeiras.

Abaixo reproduzo mais um trecho (modificado) de um ensaio maior.

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As ciências são também limitadas por uma de suas características mais marcantes (ainda que não exclusiva): a logicidade. As ciências baseiam-se fundamentalmente na lógica – especialmente a aristotélica. Os testes de hipótese baseiam-se na observação dos fatos naturais (espontâneos ou induzidos em laboratório) a refutar ou corroborar a conclusão baseada na hipótese a ser testada.

- hipótese: todo morcego é mamífero
- o fóssil X é de um morcego
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- o fóssil X é de mamífero

Se, por acaso, descobrimos que o fóssil X não é de mamífero? Podemos considerar, de um lado, que a hipótese: “todo morcego é mamífero” seja falsa. Mas, de outro, poderíamos considerar que é falso que o fóssil X seja de um morcego (digamos, que seja de um pterossauro), salvando “todo morcego é mamífero”. Isso introduz um elemento de complicação, já que nenhuma hipótese é testada de modo isolado. Alguém poderia até mesmo argumentar que seja falso que o fóssil não seja de mamífero, salvando tanto a hipótese a ser testada quanto a premissa “o fóssil X é de morcego”. Normalmente, um cientista deve se cercar de todos os cuidados para minimizar as possibilidades de erro quanto ao fóssil não ser de mamífero: o fóssil está completo? a revisão osteológica foi feita corretamente? não houve erro na identificação dos ossos?

A outra limitação do esquema lógico aristotélico foi rapidamente sugerida na discussão sobre o modelo popperiano de ciências: a veracidade de uma conclusão não garante a veracidade das premissas. O uso de uma ou de duas premissas falsas pode produzir uma conclusão verdadeira:

1) Nenhum rapaz bonito é rico;
2) Eu sou um rapaz bonito;
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3) Logo, eu não sou rico.

A premissa 1 é obviamente falsa (poderão pensar em vários astros de Hollywood bem apessoados com muitos milhões de dólares na conta bancária); a premissa 2 é, para minha infelicidade, igualmente falsa; mas a conclusão 3, para minha maior infelicidade, é verdadeira. Se alguém duvidar de minha conformação estética ou de minha conta bancária, poderá pensar neste outro exemplo:

1’) Todo organismo verde tem cérebro;
2’) A arara-azul é um organismo verde;
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3’) A arara-azul tem cérebro.

Uma couve é verde, mas desprovida de cérebro, logo a premissa 1’ é falsa. A arara-azul é, claro, azul, não verde (ainda que em certas culturas não haja distinção nominal entre o verde e o azul; vide e.g. Kay, P. & Regier, T. 2006. Language, thought and color: recent developments. Trends in Cognitive Sciences 10(2): 51-4.), logo a premissa 2’ é falsa. Mas é verdade, pelo que podemos saber, que a arara azul tem um cérebro.

Com apenas uma das premissas falsas, poderíamos ter:

1”) Todos os descendentes de orientais são homens;
2”) Eu sou descendente de orientais;
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3”) Eu sou homem.

A premissa 1” é seguramente falsa, bastando pensar na Riyo Mori (japonesa Miss Universo de 2007), Ziyi Zhang (atriz e cantora chinesa, atriz principal de Memórias de uma Gueixa. Sim, produtores ocidentais ainda não sabem a diferença entre uma japonesa e uma chinesa...), Eun-hye Yoon (atriz, cantora, modelo e apresentadora sul-coreana), entre outras. Uma rápida olhada em meu sobrenome indica que 2” pode ser considerada verdadeira. Se a dúvida persistir, um exame em minha genealogia. Mas como nem todos terão acesso a ela, fiquemos com um
segundo exemplo:

1”’) Todo organismo verde tem cérebro;
2”’) O papagaio é um organismo verde;
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3’”) O papagaio tem cérebro.

A premissa 1’” corresponde à premissa 1’, que examinamos como falsa. A premissa 2”’ pode ser tomada como verdadeira (consideremos aqui um papagaio do tipo mais comum como a do gênero Amazona, certamente há papagaios de outras cores, como o papagaio cinza africano do gênero Psittacus).

Por este motivo, para Popper, um resultado positivo – igual ao previsto – é apenas uma corroboração e não uma confirmação.
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2 comentários:

Sibele disse...

1'''' Os posts do Takata são inteligentes.

2'''' Eu leio os posts do Takata.

3'''' Logo, eu sou inteligente! :P

none disse...

Sibele,

Belo exemplo de um argumento inválido. : )

[]s,

Roberto Takata

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