Todos os filomatas deveriam ao menos conhecer as ideias básicas de Karl Popper sobre filosofia das ciências: ele foi mais do que apenas um epistemologista, mas para esta postagem é desse aspecto que falarei. Para uma introdução sobre Popper, duas fontes interessantes são esta (entrada da enciclopédia online sobre filosofia da Stanford University) e esta (sítio web dedicado a discutir a obra de Popper e trabalhos que analisam suas ideias).
O excerto abaixo é modificado de parte de um texto mais longo ao qual já me referi anteriormente. Publico aqui a propósito tanto da proposta trazida pelo novo sítio web de Gabriel Cunha (coautor do RNAm): o Ciensinando, quanto da discussão gerada pelo texto de Renato Azevedo no Polegar Opositor.
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Um esquema muito antiquado do processo de produção do conhecimento científico é como o que se segue: 1) observar e registrar os fatos do mundo real; 2) fazer uma generalização baseada nas observações; 3) formular uma hipótese para predizer os fatos; 4) fazer experimentos que comprovem a hipótese; 5) depois de muitos experimentos comprobatórios, a hipótese passa a ser uma teoria; 6) se a teoria se mantiver por muito tempo e sobreviver a mais experimentos, a teoria se transforma em uma lei científica.
Essa formulação acima se baseia na ideia do indutivismo e imagina um aumento gradativo na certeza a respeito de uma afirmação – indo do especulativo (“hipótese”), para o científico (“teoria”) e daí para a certeza (“lei”). Como dito, ela é antiquada e encontra-se em desuso na epistemologia das ciências.
Teoria são sempre teorias, elas não mudam para leis científicas. Leis científicas são apenas generalizações, normalmente na forma de relações matemáticas entre diferentes grandezas. Uma teoria é uma hipótese que procura explicar uma classe ampla de fenômenos. A hipótese é uma explicação que procura explicar um fenômeno em particular. Uma lei científica é um tipo de hipótese. Não há uma hierarquia entre elas no que se refere a graus de certeza, as denominações diferem apenas quanto ao grau de generalização e ao tipo de linguagem utilizada para expressá-las.
Considere a afirmação simples: “a água ferve sempre a 100°C”. Faz-se o experimento uma vez e se verifica que a água ferve a 100°C. Faz-se de novo e a mesma coisa. Fazem-se mil vezes e a água ferve a 100°C. No milésimo primeiro experimento, a água ferve a 200°C.
A hipótese é falsa por esse dado. O que ocorreria se a água fervesse a uma temperatura diferente de 100°C logo no primeiro experimento? A hipótese seria falseada. E se só ocorresse no ducentésimo milionésimo quadragésimo quinto experimento? Também a hipótese seria falseada.
A hipótese era verdadeira e de repente virou falsa? Não. Sempre foi falsa. Apenas descobrimos mais cedo ou descobrimos mais tarde que ela era falsa - na forma como proposta.
Não importa, então, quantas vezes obtenhamos o resultado previsto pela hipótese, sempre na próxima poderemos obter um resultado que a falseie. Assim, segundo Popper, não importa o número de corroborações, nunca a hipótese fica mais verdadeira.
O que muda, isso sim, é a nossa confiança na hipótese. Mas isso não se constitui em critério objetivo de veracidade. Não podemos ter certeza.
Mas como, então, pode haver um progresso científico? Vários relativistas negam que exista mesmo um progresso científico, porém é um posicionamento não defensável – sobretudo com o atrelamento do progresso tecnológico ao desenvolvimento das teorias científicas (somos mais e mais hábeis em manipular os elementos naturais a nosso favor ou contra nós).
Ocorre que a cada hipótese falseada, uma nova é colocada em seu lugar. Naturalmente essa nova hipótese deve cobrir toda a gama de dados que a anterior cobria e mais as que a antiga não cobria. Isso, por si só, aumenta o alcance da teoria substituta. (Estou usando hipótese e teoria de modo mais ou menos equivalente.)
Em não poucos casos, ocorre ainda um processo de generalização da teoria anterior – a antiga fica como uma espécie de caso particular da nova teoria (como a teoria newtoniana pode ser vista como a física einsteniana a baixas velocidades e energias).
Desse modo, pode haver uma expansão heurística da teoria anterior – mas o que não faz com que ela deixe de ser falsa na forma anteriormente proposta.
A única ideologia ao qual se precisa recorrer aqui – e nisso não há diferença entre as posições concorrentes – é a de que os dados da natureza são indicativos da realidade. Isto é, se eu meço o comprimento de um campo e obtenho de modo sistemático o valor de 129 metros, existe uma realidade subjacente por trás disso que corresponde a um valor de cerca de 129 metros – talvez o comprimento real do campo ou talvez outra propriedade do aspecto da realidade que faça com que eu meça esse valor (digamos, deus quis assim ou uma distorção local do espaço ou qualquer outra coisa). Uma ideologia concorrente seria o solipsismo – não há uma realidade objetiva, apenas a minha subjetividade e tudo não passa de uma ilusão. (Se bem que mesmo nesse caso, tenderíamos a associar uma estrutura de nossa subjetividade com os dados que obtemos.)
É bom observar também que o certo e o errado na sociedade são uma coisa. O “certo” e o “errado” nas ciências são outra coisa. A correção e a incorreção social é uma construção complexa que pode envolver atos de poder (geralmente o faz). A correção e a incorreção científica baseiam-se nos dados da natureza, nos fatos. Falar que o céu é verde é incorreto – é um dado da natureza de que ele é azul (descontando-se o nascer e o pôr-do-sol e eventuais alterações da visão; mais rigorosamente, é um dado da natureza que o céu dispersa e transmite a luz solar de tal modo que esta, ao atingir nossas retinas e ser processada por nosso cérebro, causa-nos a sensação visual da cor azul).
O conhecimento científico, então, não é definitivo, é algo sempre provisório. Mas se pode dizer que qualquer conhecimento acerca da natureza – entendendo aqui o conhecimento como o conjunto de informações a respeito de um sistema, e informação como qualquer dado que diminua a incerteza a respeito do estado desse sistema – é sempre provisório (por conta das limitações que temos para acessar a verdade ou mesmo para saber se ela, a verdade, de fato existe). No entanto, isso deve ser entendido com cuidado. Pois, do contrário, poderá ficar-se com a impressão de que, nesse caso então, qualquer coisa é igualmente válida – que é simples questão de escolher o discurso que mais agrade a respeito de como o mundo funciona, de que qualquer coisa é possível. Qualquer coisa é possível? Impossivel não é. Algo só é impossível dentro de uma determinada teoria – se os fatos mostram que não é impossível, então o problema é da teoria e não dos fatos. Por exemplo, pela segunda lei da termodinâmica é impossível se criar um motoperpétuo. Mas se alguém conseguir criar isso, azar da termodinâmica. Por enquanto não criaram, então continuamos com essas leis. O que importam são os dados fatuais. Há bons indícios a favor? Há indícios contra? Se há bons indícios a favor, então temos uma corroboração. Se há fortes indícios contra, então possivelmente teremos que revisar a teoria - ou mesmo abandoná-la.
É irônico que Popper – que durante anos se bateu com a teoria da evolução como não falseável (até finalmente ceder aos argumentos que demonstravam o caráter de falseabilidade da evolução) – tenha dado uma resposta de certo modo “selecionista” do progresso científico: as teorias eram selecionadas de modo a darem melhor conta dos fenômenos naturais, não progredindo necessariamente para um suposto caráter mais verdadeiro (de modo similar a que uma população de organismos pode evoluir para formas mais adaptadas a um ambiente modificado, sem chegar a um estado de perfeição). (Claro, vários filósofos se bateram contra o argumento de Popper a respeito.)
Pode-se perguntar então: “Para que pesquisar, então, se sempre temos a mesma dúvida?”
Por vários motivos. Para Popper, os cientistas deveriam trabalhar na tentativa de derrubar uma hipótese estabelecida. (Não é à toa que vários crackpots também se juntam a essa tarefa – mostrar que Einstein, afinal, estava errado é algo que massagearia o ego de quase qualquer pessoa.) Além disso, as dúvidas não são exatamente as mesmas - move-se para o que Popper chamou de “problemas mais interessantes”.
Voltemos à água que ferve a 200°C. Derrubamos a hipótese de que ela sempre ferve a 100°C. Mas por que ela ferveu a 200°C? Vemos que nosso assistente, cansado dos respingos de água quente, resolveu tampar a panela, mas como a tampa ficava sambando com as bolhas que escapavam, ele selou a tampa. Surge uma hipótese: a tampa fez com que as bolhas não mais pudessem escapar e com isso aumentou-se a pressão no interior da panela, o que aumentou a temperatura de fervura. Criamos a hipótese de que há relação direta entre pressão e temperatura de fervura. Deixamos a hipótese “a água sempre ferve a 100°C” e passamos para uma nova hipótese que, talvez concordem, é mais interessante – dá mais pano para manga. Em vez de apenas esquentar a água da panela e medir sua temperatura, passamos a analisar também a pressão – variamos esse fator e verificamos como a temperatura de ebulição se altera. E se um dia nosso assistente – na verdade somos nós, mas botamos a culpa no assistente, que é mais fácil – derrubar sal na água à pressão de 1 atm, notaremos que a nossa hipótese da relação direta da temperatura de ebulição da água com a pressão vai pro espaço... E criamos uma nova hipótese: “a temperatura de ebulição da água é função da concentração de sais dissolvidos e da pressão ambiente a que está submetida”... E a brincadeira prossegue.
Outro motivo para se pesquisar é que conseguimos soluções práticas para muitos problemas – desenvolvemos tecnologia com o conhecimento, dominamos melhor a natureza. (A possibilidade de controle mostra exatamente o nosso grau de conhecimento. Uma comparação, quanto menos você conhece um carro, menos você é capaz de guiá-lo. Mas se você sabe que se apertar tal pedal o carro avança e se aperta o outro pedal o carro pára, já começa a ser capaz de fazer algumas
coisas.)
Além de ser divertido pesquisar.
Saindo um pouco de Popper, entre muitos físicos, aí sim encontraremos defensores de aumento gradativo do grau de certeza (embora eles mesmos defendam o popperismo). Há ainda uma análise bayesiana desse aumento do grau de certeza – essa é um tanto mais complexa e abordaremos em outra ocasião.
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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Discutindo ciências filosoficamente 1
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